Beneficiários do Bolsa Família (BF) recebem dinheiro em uma conta que podem movimentar através de um aplicativo e, com esses recursos, compram produtos e serviços. Conforme suas prioridades e preferências, cada família é livre pra escolher onde e o que exatamente comprar. Evidentemente, estabelecimentos que não são escolhidos não vêm a cor do dinheiro deles. Ou seja, nossos impostos que viram BF pagam apenas por produtos e serviços que satisfazem aos beneficiários. Como deve ser.
— Corte para um universo paralelo —
Nesse universo, a vida de quem recebe o BF é diferente. Cada estado tem sua rede de provedores de produtos Públicos Gratuitos e de Qualidade: supermercados, lojas de roupas, farmácias, lojas de material de construção, etc. Só nesses estabelecimentos, o beneficiário pode adquirir produtos usando o crédito do BF. Para coordenar esses serviços, existe o Ministério do Atendimento Público Gratuito e de Qualidade (MAPGQ) e cada estado tem uma Secretaria para cada setor: a Secretaria de Alimentos Públicos Gratuitos e de Qualidade, a Secretaria das Roupas e Calçados Públicos Gratuitos e de Qualidade, a Secretaria do Material de Construção Público Gratuito e de Qualidade e assim por diante.
Há também alguns órgãos federais ligados ao MAPGQ. Só na área de Alimentação, temos o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Alimentação; a Secretaria de Alimentação Básica; a Secretaria de Alimentação Continuada, Nutrição, Diversidade e Inclusão; o Plano de Alimentação Articulada; e o Centro de Inovação para a Alimentação. Todos esses órgãos se destinam a planejar, produzir, prover, regulamentar, controlar e fiscalizar o acesso a alimentos dos beneficiários do BF.
Para surpresa de alguns, apesar do país gastar mais de 6% do seu PIB no sistema de atendimento ao beneficiário do BF, ele não é exatamente um sucesso.
D. Maria chega na loja Alimentos Públicos Gratuitos e de Qualidade (APGQ) da favela onde mora e entra na fila. O único dos 10 funcionários que não está em horário de intervalo checa seu cadastro e entrega um papel indicando quanto ela ainda tem de crédito: o vale-compras. Depois de mais 20 minutos na fila do carimbo de autenticação do vale-compras, ela pega 1 kg de feijão — sempre do mesmo tipo, sem marca. Se ela quisesse um feijão diferente, teria que ir no mercadinho de Seu Chico, ao lado, e pagar com dinheiro porque na APGQ, não tem. As frutas em geral estão meio passadas e o iogurte frequentemente está vencido, mas D. Maria sabe que não adianta reclamar. Primeiro porque, como todo mundo sabe, tudo que ela pega na APGQ é ‘gratuito e de qualidade’ e segundo, porque ela não tem dinheiro: ou ela pega lá ou fica sem.
Todo ano aumentam os impostos, teoricamente para pagar por melhores serviços e produtos para as redes estaduais, mas só há alguma melhora, ainda que temporária, em véspera de eleição. Quem depende desse sistema fica à mercê de distribuidores que não lhes prestam contas pelos maus serviços oferecidos. Corrupção, má gestão e desperdício são a regra.
Diante deste quadro, em 2014, os burocratas do Ministério do Atendimento Público Gratuito e de Qualidade resolveram agir. Um grupo de especialistas estabeleceu o Plano Nacional de Atendimento Público Gratuito e de Qualidade, com metas a ser atingidas até 2024. No total, são 20 metas, com 254 estratégias associadas e 14 artigos que dizem o que o país deve fazer. Devido à urgência e ao fato de todos os envolvidos serem especialistas em serviços públicos, gratuitos e de qualidade — alguns inclusive dizem ter estudado em Harvard —, não foram buscadas evidências científicas que dessem suporte ao plano. Também ignoraram que até o prazo final estabelecido, 2024, se todas as estratégias fossem implementadas, teríamos comprometido só com esse plano, 15% do PIB. Mas isso é detalhe. O que importa é que o plano é apoiado por grande produtoras de insumos para as redes estaduais e é promovido por ONGs midiáticas ligadas ao MAPGQ. O que poderia dar errado?
Para surpresa de ninguém, pouquíssimas metas foram cumpridas no prazo, de acordo com estudo do Observatório do Plano Nacional de Atendimento Público Gratuito e de Qualidade. Dentre as metas cumpridas, uma de extrema importância: a formação de um fórum permanente para acompanhar o piso salarial dos provedores de serviços públicos, gratuito e de qualidade. Para gáudio deles e de seus sindicatos, recentemente foi aprovada a permanência na Constituição Federal de um novo Fundo de financiamento para garantir os salários deles, independentemente de qualquer melhora nos serviços públicos gratuitos de qualidade providos.
— Corte de volta para a realidade —
Felizmente para os beneficiários do BF, a ‘zumbilândia’ descrita acima, não reflete o sistema de pagamento do seu benefício. No entanto, esta é basicamente a realidade do sistema de escolas geridas pelo Estado, que é justamente o único a que têm acesso os filhos de quem recebe o BF e que atende muitos outros milhões de crianças e jovens. Há ainda o agravante de que o serviço educacional é muito mais complexo do que a simples distribuição de produtos (alimentos, roupas, etc.); logo, demanda mais expertise e governança muito mais sofisticada. Não é à toa que nossos resultados educacionais estão há anos entre os piores do mundo: como sabemos, o Estado, além de péssimo gestor, não tem incentivos para entregar qualidade. Muito menos eficiência.
- Como é possível que um sistema, indefensável sob qualquer aspecto, seja imposto a 40 milhões de estudantes?
- Quem se beneficia desse estado de coisas?
- Por que não financiamos os estudantes nas escolas de sua escolha do mesmo jeito que financiamos os beneficiários do BF nas lojas de sua escolha?