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Todos pela “ciência” que convém – o beco sem saída da educação brasileira

Em março de 2022 foi publicada uma “síntese de evidências”  sobre os efeitos dos subsídios públicos para entidades privadas em educação. Difícil dizer o que mais me fascinou, se a impressionante “capacidade sintética” de pinçar dos artigos citados, apenas os trechos que supostamente confirmassem um viés ideológico estatista, se o “esquecimento” de fornecer algumas das principais conclusões desses mesmos artigos, se a “liberdade poética” para interpretar dados, ou se o desembaraço em estabelecer, a partir dessa interpretação, digamos, curiosa, “implicações para o Brasil”.

O primeiro item de ‘Resultados’ da “síntese de evidências” se refere ao “Impacto nulo ou muito baixo das escolas charter sobre o desempenho dos estudantes”. Um dos estudos referenciados é Jabbar et al. (2019) , que traz uma meta-análise robusta sobre os efeitos da competição entre escolas quando há políticas de escolha da escola. O artigo vai muito além de dar respostas simplistas, como parecem crer os autores da “síntese de evidências”. Nele, temos análises dos impactos de diferentes contextos e modalidades de sistemas, com o objetivo de informar decisões sobre políticas públicas relacionadas à Escolha da Escola. Alguns desses diferentes contextos são a existência de um limite na quantidade e nos tipos de escolas charter por distrito, os critérios de elegibilidade para participar de um sistema de vouchers (tanto para as escolas quanto para as famílias), a proximidade entre escolas concorrentes, o market share de escolas que recebem vouchers, as políticas de transparência e prestação de contas das escolas participantes, a autonomia dos gestores de escolas estatais para reagir às pressões competitivas, questões curriculares, políticas disciplinares, dentre outros. 

O fato de estudos diferentes medirem algumas dessas dimensões contextuais, e não outras, afetam resultados, quando agregados. A esse propósito, seus autores afirmam: “Se essas medidas capturam diferentes dimensões da concorrência e, portanto, podem ser empiricamente diferentes, isso pode ajudar a explicar algumas das descobertas divergentes na literatura” (p. 7).


Eis que temos então, a primeira interpretação free-style na “síntese de evidências”: “Nos Estados Unidos, quanto mais agregados os dados, menor o impacto sobre a aprendizagem, ou seja, há evidências de impacto positivo quando os dados são analisados no nível dos alunos, mas o impacto torna-se nulo em análises agregadas (Jabbar et al., 2019). Neste sentido, podemos entender que a competição entre as escolas pode beneficiar alguns alunos de maneira individual, mas não trazem [sic] benefícios para a rede de ensino como um todo.” (grifos meus) 

Ora, evidentemente que não podemos e não devemos entender dessa maneira. Basta ler a explicação dada no próprio artigo citado: 

“Esses efeitos são significativamente diferentes de zero para estudos que usaram o estudante como unidade de nível de análise, sugerindo que mais unidades agregadas [a escola, o distrito] podem não ser capazes de capturar os efeitos da concorrência. À medida que as pesquisas avançam para medir os resultados no nível do aluno, isso pode aumentar o poder de detectar efeitos competitivos.” (Jabbar et al., 2019, p. 21)

Ou seja, não é que o impacto nas redes seja efetivamente nulo e que a competição entre escolas não traga benefícios às redes em nenhuma circunstância. O que ocorre é que, dados os desafios metodológicos para aferir esse impacto sobre uma enorme diversidade de modelos e contextos, não existe uma resposta definitiva – como sugere a “síntese”. Na mesma linha, Berends (2015, p. 168) indaga e responde: “As escolas charter aumentaram o desempenho dos alunos na última década? Infelizmente, a resposta é “depende”. Depende dos dados, da localização, dos métodos e da interpretação.” 
 

Tal achado reforça a ideia explicitada nas conclusões dessa meta-análise, mas omitida da “síntese”, de que é preciso pesquisar mais. No nosso caso, isso significa aprender com as boas práticas, adaptar à nossa realidade os modelos que trazem efeitos positivos e avaliar criteriosamente os resultados obtidos. Ainda mais porque, apesar da dificuldade de interpretar dados agregados, no nível do estudante – que é a unidade que realmente importa – os efeitos, ainda que limitados, são positivos. Nunca é demais lembrar: diante do que temos hoje em termos de aprendizagem dos alunos, é bastante improvável que consigamos piorar. Ou seja, temos muito pouco a perder ao testar modelos diversos de sistemas de vouchers e de escolas conveniadas (charter). 

Aliás, os outros artigos referenciados na “síntese” como tendo analisado “dezenas de estudos rigorosos sobre a experiência” – o já citado Berends (2015)  e Grube e Anderson (2018)  – trazem as mesmas conclusões: os efeitos no desempenho acadêmico dos estudantes é bastante pequeno, ainda que estatisticamente positivo e que, devido à maneira como contextos e modelos diferentes impactam de forma diferente, mais estudos são necessários.  

Claramente, os autores da “síntese de evidências” ignoraram a recomendação de suas principais referências relacionadas ao impacto da escolha da escola no desempenho dos estudantes: “O desenho específico das políticas de escolha da escola pode influenciar a natureza da concorrência. É importante examinar não apenas se a escolha melhora resultados, mas também quando e em que condições (Berends, 2015).” (Jabbar et al., 2019, p. 5).”

E por falar em dar atenção às suas próprias referências, além dos efeitos da competição sobre o desempenho acadêmico, Berends (2015) comenta outros efeitos positivos das escolas charter nos Estados Unidos: “Embora sejam necessários mais estudos sobre escolaridade e outros resultados, até o momento, ao examinar a taxa de graduação do ensino médio e de matrícula na faculdade, os resultados sugerem um forte efeito positivo das escolas charter no alcance educacional,.” (p. 170). 

Aliás, como bem pontuado por Jabbar et al., 2019, (p. 8), “Pais e pagadores de impostos podem valorizar outros resultados além de melhores notas em exames, tais como a motivação ou o comportamento do aluno (Tuttle et al., 2015), salários mais altos (Dobbie & Fryer, 2015), segurança na escola (Hamlin, 2017), diversidade do corpo discente (Frankenberg & Lee, 2003), ou valores escolares (Betts, 2009). Só recentemente, pesquisadores começaram a explorar esses outros resultados das políticas de escolha da escola. Embora nos concentremos, para nossa meta-análise, nos resultados dos alunos em exames, reconhecemos que estes são simplesmente uma medida dos resultados de interesse dos alunos." Lamentavelmente, a importância de todos esses fatores segue ignorada por defensores de grupos de interesse ligados à burocracia educacional brasileira.

Da mesma maneira, sem surpresa alguma, não há qualquer menção a uma evidência apontada por Jabbar et al. (2019, p. 24), que deveria interessar aos verdadeiros defensores dos estudantes mais vulneráveis: “nós achamos evidências de que a porcentagem da amostra de estudantes de minorias foi um moderador, sugerindo que a competição entre escolas pode ter uma influência maior sobre o desempenho dos alunos pertencentes a essas minorias. Isso é consistente com alegações dos defensores de que a escolha pode melhorar as oportunidades educacionais particularmente para alunos marginalizados, não apenas para aqueles que escolhem, mas também para aqueles “deixados para trás” nas escolas públicas tradicionais.”
 
Finalmente, nenhuma conclusão aparece na síntese, a partir de dados apresentados por Grube e Anderson (2018, p. 26) de que estudantes de escolas charter não têm o mesmo valor de financiamento garantido aos estudantes de escolas públicas tradicionais. Nesse artigo, vemos que as escolas charter independentes de Milwaukee, por exemplo, recebem por aluno, apenas 80% do valor que escolas públicas tradicionais recebem.

Este não é um caso excepcional em que estudantes que optam por financiamento público para estudar em uma escola de escolha são subfinanciados em relação aos que permanecem em uma escola estatal. Em Washington D.C., por exemplo, enquanto que o Estado gasta cerca de US$ 28.000 (U.S. DEPARTMENT OF EDUCATION, 2018)  por aluno por ano, o valor do voucher para escolas privadas varia entre US$ 9.401 e $14,102 por aluno por ano, conforme a série (EDCHOICE, 2022) . Ou seja, considerando toda a Educação Básica, o Estado gasta por aluno na escola pública estatal cerca de US$ 364.000 e cerca de US$ 127.000 para cada aluno com voucher – e obtém os mesmos resultados acadêmicos! Com um pouco de honestidade intelectual, concluiremos que qualquer pequeno avanço nas notas em exames – com quase 1/3 do valor investido – representa, na verdade, um avanço bastante significativo.

O segundo item de ‘Resultados’ da “síntese de evidências” afirma que “Vouchers têm maior impacto sobre a aprendizagem do que as escolas charter nos Estados Unidos. Em outros países, têm impacto baixo ou inconclusivo.” Dentre esses “outros países”, certamente não está incluída a Colômbia: um estudo da Universidade de Stanford (Bettinger et al., 2019)  sobre efeitos dos vouchers ao longo de 20 anos na Colômbia mostra que estudantes sorteados para acessar o ensino vocacional em escolas privadas, usando vouchers, foram fortemente impactados. Dentre os efeitos destacam-se maiores chances de concluir o Ensino Médio dentro do prazo, de sair da pobreza e alcançar renda classificada como de classe média até os 33 anos, morar em regiões menos pobres da cidade, de conseguir financiar um carro e de não ter um filho na adolescência. Tudo isso com menos gastos públicos enquanto ele está na escola e maior arrecadação depois que ele conclui.

Os autores da “síntese” citam especificamente o Chile: ”Experiências em outros países, como o Chile, mostram um impacto nulo ou pequeno dos programas de voucher sobre a qualidade da educação.” Vou tratar desse item juntamente com o seguinte, que afirma que: “Há um impacto importante sobre a segregação e a estratificação do sistema”. Segundo os autores, além de ter impacto baixo ou inconclusivo, o sistema de vouchers gerou aumento da disparidade de desempenho entre alunos de alto e baixo nível socioeconômico. O que temos aí – na melhor das hipóteses – são conclusões baseadas em dados desatualizados. Os artigos citados são de 2014 (Valenzuela et al.)  e 2012 (Elacqua) . Ocorre que, em 2008, foi feita uma reforma no sistema de vouchers chileno (Ley de Subvencion Preferencial, ou SEP), que resultou no aumento do valor do voucher em 50% para “alunos prioritários”, aqueles cuja renda familiar se encaixa nos 40 por cento mais baixos da distribuição nacional. 

Um dos artigos citados na “síntese”, Valenzuela et al. (2014), deixa explícito em uma de suas notas (p. 20) que “Isso mudou em 2008, quando foi aprovada a ‘Lei do Vale Preferencial’: o que diferenciou o custo do voucher de acordo com o nível socioeconômico dos alunos. Nossas análises empíricas abrangem até 2008; logo, elas não consideram essa reforma.”

Por que este estudo desatualizado, foi escolhido como referência para implicações para o Brasil é um mistério. Ou talvez, nem tanto, dado que os resultados de estudos posteriores, que mencionarei em seguida, apontam melhoras significativas nos efeitos do sistema de vouchers chileno. 

O outro estudo citado na “síntese”, (Elacqua, 2012, p. 451), aponta que “evidências preliminares sugerem que o programa de vouchers ajustado [referência à reforma] pode fornecer às escolas, incentivos para matricular populações estudantis mais desfavorecidas e reduzir a segregação socioeconômica e indígena” e que mais pesquisa é necessária. Evidentemente, não há na “síntese”, qualquer menção a esse potencial avanço para reduzir a segregação, ou mesmo à própria reforma de 2008 no sistema de vouchers chileno. 

A ausência de qualquer referência “se justifica”: efetivamente, segundo estudo mais recente  (Narodowski, 2018), as evidências mostram que a segregação escolar não é exclusiva do sistema chileno. A maioria dos países latino-americanos experimenta tendências de segregação semelhantes, ainda que neles não existam sistemas de vouchers. No entanto, há uma diferença: esses países têm maior segregação e pior desempenho acadêmico do que o Chile – com seu sistema de vouchers.

O mesmo estudo conclui que as evidências mostram que quando se compara o Chile com países semelhantes, muitas explicações sobre seu sistema de vouchers, na verdade, não passam de preconceitos. E acrescenta que é necessário um debate racional sobre suas vantagens e realizações quando comparadas com os quase-monopólios estatais predominantes nos sistemas educacionais da maioria dos países latino-americanos. Essa demanda, aliás, deveria ser de todos os que realmente desejam garantir aprendizado de qualidade para crianças e jovens.

Especificamente quanto ao desempenho dos estudantes relacionado à segregação, Murnane et al. (2017)  apontam que, nos cinco anos após a reforma do sistema de vouchers, os resultados nos exames dos alunos aumentaram acentuadamente e as diferenças nessa pontuação atribuídas à renda diminuíram em um terço. De fato, dados do PISA 2018 (OECD, 2019b)  confirmam que não só a diferença de performance entre estudantes pobres e ricos chilenos diminuiu desde 2009, como a dos brasileiros, que seguem reféns de escolas estatais, (OECD, 2019a)  aumentou. O estudo confirma, portanto, que modelos diferentes de sistemas de vouchers trazem resultados diferentes. No entanto, para alívio dos estatistas brasileiros, aparentemente, esses dados do último PISA, assim como os dos estudos citados acima, não pareceram relevantes aos autores da “síntese" cujas  "evidências” devem nortear decisões educacionais para o Brasil.

Para quem efetivamente se preocupa com o impacto dessas políticas nos estudantes, especialmente os mais vulneráveis, felizmente, ao contrário do que sugere a “síntese de evidências”, a sinalização é positiva. Segundo Jabbar et al., 2019 (p.22), “em geral, a competição resultante das políticas de escolha escolar efetivamente tem um efeito positivo no desempenho dos alunos, ainda que pequeno. A ausência de um impacto geral negativo nos resultados dos alunos pode aliviar as preocupações dos críticos de que a concorrência prejudicaria os alunos “deixados para trás” devido às políticas de escolha da escola.”  

Outro trecho cujo significado foi "misteriosamente" omitido da “síntese de evidências”: “nós achamos evidências de que a porcentagem da amostra de estudantes de minorias foi um moderador, sugerindo que a competição escolar pode ter uma influência maior sobre o desempenho dos alunos pertencentes a essas minorias. Isso é consistente com alegações dos defensores de que a escolha pode melhorar as oportunidades educacionais particularmente para alunos marginalizados, não apenas para aqueles que escolhem, mas também para aqueles “deixados para trás” nas escolas públicas tradicionais.” (Jabbar et al., 2019, p.24). Ademais, “A maioria dos estudos sugerem que os alunos que ficam nas escolas públicas tradicionais não são prejudicados (Grube & Anderson, 2018, p. 36)”  Por incrível que pareça, todos esses trechos vêm dos estudos citados na “síntese de evidências”.

Quase no final da “síntese”, seus autores afirmam que não há evidências de que subsídios públicos para escolas privadas estimulem inovações educacionais. Mais uma vez, não é o que conclui um dos estudos referenciados (Grube e Anderson, 2018, p. 32), que afirma literalmente: “A escolha da escola e as escolas charter trouxeram diversidade de currículos para cidades e estados. No entanto, o escopo de inovação e diversidade varia.”

Para finalizar, comento aqui a conclusão final dos autores da “síntese” para justificar a inadequação da adoção de sistemas de vouchers ou de escolas conveniadas (charter) no Brasil. Alegam eles que, caso escolas privadas sejam subsidiadas com fundos públicos, será essencial que elas sejam responsáveis e transparentes no uso de tais recursos. Segundo eles, o Estado, no entanto, não terá condições de avaliar a educação privada subsidiada de modo a garantir que essas escolas sejam responsabilizadas financeira e academicamente caso os alunos não recebam educação de alta qualidade. O que nos leva então à espantosa conclusão sobre nossa realidade atual, de quase-monopólio dos recursos públicos pelas escolas estatais: sem o conhecimento de nenhum de nós, escolas estatais no Brasil são responsáveis e transparentes no uso dos recursos dos pagadores de impostos. Os trágicos resultados dos estudantes brasileiros certamente não passam de fake news. Podemos igualmente inferir que, ainda que ninguém jamais tenha visto ou ouvido falar disso, escolas estatais ineficazes e ineficientes perdem os recursos e eventualmente fecham – como efetivamente acontece com as escolas charter que não atingem as metas estabelecidas. 

Diante dessa bizarrice, é difícil saber se a intenção dos autores era só manipular o leitor desatento, ou concluir sua “síntese” com um pouco de humor. Pessoalmente, não achei graça nenhuma. Termino meus comentários esclarecendo que minha intenção aqui não é apenas o de restabelecer a verdade escondida nessa suposta síntese de evidências. Afinal, não se pode esperar muito além de meias-verdades de quem defende explicitamente o Estado brasileiro como fiador da qualidade de serviços, por mais simples que sejam – o que não é o caso da Educação. 

Um outro motivo, possivelmente mais importante, é o de conclamar aqueles que se dizem defensores das ideias da liberdade, inclusive enquanto partido político, a se posicionar de maneira inequívoca e firme. Não há mais tempo para tergiversar e contemporizar com a ineficiência e a ineficácia do Estado na provisão educacional, que afeta o futuro de milhões de crianças e jovens brasileiros. Não há mais espaço para ambiguidades politicamente corretas sobre o papel do Estado “à frente da Educação pública” como suposto garantidor do acesso à “educação gratuita de qualidade”. Primeiro, porque já passou da hora de deixar claro que não existe educação pública gratuita. Muito menos se esta for de qualidade. Segundo, porque sabemos perfeitamente qual tem sido o papel do Estado brasileiro no que tange à péssima qualidade da nossa educação: o de privilegiar os meios no lugar dos fins – o sistema e os grupos de interesse ligados a ele, em detrimento dos estudantes. Chega de corporativismo e desonestidade intelectual: que sejamos, no mínimo, todos pela honestidade na educação.

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Por Anamaria Camargo 30/07/2022